Gazeta do Sul
O crack, também cocaína, via de regra é menos “puro”, mais barato, misturado a outras substâncias para dar volume, algumas inócuas e outras nem tanto. A grande diferença é que ele é tragado, após queimado em latinhas ou cachimbos, vai direto aos pulmões, daí direto ao sangue arterial e daí logo ao cérebro. Vapt-vupt. As ações são praticamente iguais à cocaína aspirada, mas mais, muito mais rápidas, intensas e fugazes. O indivíduo passa por uma sensação, aí sim, inigualável! Bem-estar, euforia, ideias de grandeza, poder e força. Se for ignorante, tende a repetir aquilo que Freud descrevia, nas crianças, como a busca constante do princípio do prazer. Só que nas crianças ele vai gradativamente sendo substituído pelo princípio da realidade. Isso numa família sadia.
Por fim: o tratamento. Não adianta absolutamente nada colocar o viciado numa “fazenda” aberta, sem infraestrutura, apenas com uma atmosfera cheia de boas intenções. A “fissura” (falta do crack) é tão grande que o usuário sai quando quiser, campo afora da “fazenda”. Costuma não haver médicos, nem adiantaria. Tampouco em hospital geral, exceto se houver intercorrência clínica. Nem nas clínicas psiquiátricas remanescentes, já que com a nova política de saúde mental elas passaram a ser “estimuladas” a fechar, dando lugar à ambulancioterapia. Nessas remanescentes, os aditos a drogas costumam colocar em polvorosa os demais pacientes. Agora, a conclusão mais importante, embora violentada pelo resumo inevitável a que me referi. Acredito que a frase mais importante da boa política é “administrar a escassez”. Em outras palavras, não há dinheiro para fazer tudo. Nem nos países ricos. No caso, seriam necessárias casas ou estações de tratameno, montadas num tripé: parte prisão, para que o paciente/usuário não fuja; parte escola, com reuniões de grupo diárias, palestras, tentando “reeducá-lo” conforme sua personalidade prévia (o psicopata não muda nunca); e parte hospital, onde a equipe de saúde, chefiada por psiquiatra(s) e somada a psicólogos, assistentes sociais, enfermagem, atendentes e acompanhantes terapêuticos o tratasse com medicamentos para monitorar a síndrome de abstinência, verificasse os danos já ocorridos no cérebro e estabelecesse um plano terapêutico personalizado, reuniões com familiares, passeios monitorados, etc...
Fácil, não? Deixando a ironia de lado, fácil é constatar que o município, Estado ou União não têm recursos para bancar o aumento dos leitos das outras especialidades, não têm recursos para presídios de segurança máxima para os que se locupletam com esse comércio, etc. Então??? Por enquanto o jargão ‘crack nem pensar’ é uma técnica de repetição/condicionamento para os instruídos. Para os não, pode até funcionar como desafio/curiosidade. Mas para todos os viciados em crack, incluindo os que não querem tratamento ou não suportam, só com instituições como acabei de descrever. A obrigação do tratamento, quando não houvesse espontaneidade (o viciado ‘espontâneo’ quase sempre só quer se “energizar” temporariamente, amedrontado pela morte), seria solicitada por familiar ou responsável ao Poder Judiciário, que obrigaria ao tratamento. Pelo menos durante meio ano. Três semanas em regime aberto, sem médico, seria cômico se não fosse trágico. Trágico para o usuário, para a família, para a comunidade, para o incremento da violência.
Há que pensar, e administrar com bom senso. Isso tudo, no que diz respeito ao usuário. Na outra ponta, na produção e distribuição da droga: tolerância zero. Mas é luta quase inglória, pois envolve o crime organizado, lucros estratosféricos e infiltrações por praticamente todas as camadas sociais. Eis a questão: pensar ou não pensar, acertar nas prioridades. O usuário de crack ou é tratado, ou para espontaneamente, ou acaba preso ou morre cedo!
Tratar adequadamente implica em altos investimentos. Quantos terão recaída? Enquanto isso, quantos novos casos surgirão? Melhor seria a instrução (educação) e prevenção. Curiosamente os EUA, que têm uma fronteira de milhares de quilômetros com o México, já contam com uma “prevenção” natural dos próprios cartéis mexicanos. Sim, porque eles, os cartéis, só exportam maconha, heroína e cocaína. O crack não, porque os traficantes acham que pode matar o usuário, e com isso boa parte da clientela... De qualquer modo, o crack é a droga mais devastadora que já surgiu, e só a prevenção e o possível tratamento merecem outro capítulo.
Fernando Cássio Tatsch/Médico psiquiatra
domingo, 8 de novembro de 2009
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário