O cristal é uma "design drug", uma droga desenhada em laboratório. A droga causa sensação de euforia, bem-estar e aumento do desejo sexual e da resistência, mas também pode provocar depressão, parada cardíaca e até a morte
Metanfetamina, cujo efeito é pior que o do crack, já é motivo de atendimentos no Caps e em clínicas particulares
Cristal, MD cristal ou ice. A droga que já é considerada uma epidemia nos Estados Unidos chegou ao Ceará. Do inglês crystal meth, a substância é uma metanfetamina que pode provocar pânico, alucinações, convulsões, risco de derrame, parada cardíaca e até a morte. Como já acontece em cidades como São Paulo e Brasília, as informações obtidas pelo Diário do Nordeste dão conta de que a droga está sendo comercializada em festas raves na Grande Fortaleza, eventos de música eletrônica que duram horas ou até dias.
A rede municipal de saúde já atendeu usuários de cristal, segundo o psiquiatra e integrante do Colegiado de Saúde Mental do Município de Fortaleza, Marcelo Fialho. Ele explica que os usuários da metanfetamina são de classe média alta, visto tratar-se de uma droga mais cara que o ecstasy - o custo de um comprimido ou de uma porção em pó é comparável ao de um mouse de computador, mas pode chegar até ao valor de uma TV de 21 polegadas.
O cristal pode ser ingerido em cápsula, injetado, cheirado como cocaína ou fumado como o crack. Além dos efeitos nocivos, a droga causa sensação de euforia, aumento do desejo sexual e da resistência, daí a associação com as raves, nas quais o público passa horas acordado.
Relatos de dependentes químicos indicam que o potencial destrutivo do cristal é bem ao superior ao do crack. "Ouvi dizer que o cristal é dez vezes pior que o crack", relata uma cabeleireira de 40 anos, dependente de crack. Segundo ela, a droga já circula por Fortaleza.
"O cristal é uma ´design drug´, ou seja, uma droga desenhada em laboratório. É realmente, bastante potente. Uma quantidade muito pequena pode produzir efeitos bastante significativos", explica Fialho. Ele acredita ser difícil comparar os efeitos do cristal e do crack porque o primeiro é um estimulante sintético, tal qual o ecstasy, enquanto o segundo é um psico-estimulante produzido da cocaína.
Os comentários a respeito do cristal entre dependentes químicos sugere que encontrá-lo pode não ser tão difícil. De acordo com a coordenadora do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps-AD) da Regional II, Adriana Magalhães, um paciente em tratamento no local afirmou conhecer "uma turma da pesada" que usa o cristal, apesar de ele mesmo negar já ter consumido a substância.
A reportagem entrou em contato com responsáveis por clínicas particulares de tratamento de dependentes químicos com perfil de classe média e classe média alta. Na Clínica Cena, o diretor, Dionísio Pinho, revela que, pelo menos, cinco usuários já relataram ter provado o cristal. "Em dois deles não acredito muito, pois, muitas vezes, há uma fabulação", pondera. Nenhum dos pacientes internou-se por conta da metanfetamina, ou seja, ela não era a droga de preferência deles. Os relatos de uso do cristal eram de sensação de "euforia, bem-estar e um prazer muito grande". "É uma coisa mínima ainda, mas a gente já sabe que está no mercado", diz.
O psiquiatra e coordenador da Clínica Villa Vita, Gilmário Holanda Almeida, disse que ainda não recebeu pacientes locais por conta do cristal, mas que já tratou alguns usuários vindos dos Estados Unidos. "Lá é muito comum. O cristal é muito parecido com o ecstasy, uma droga de rave, dessas boates, desses clubes fechados", explica.
De acordo com o coordenador do Instituto Volta Vida (IVV), Osmar Diógenes, pacientes da clínica também já comentaram sobre o cristal. "Eles dizem que é uma droga super-alucinante. Não assumem, mas podem até ter usado", desconfia. Para eles, esses depoimentos são indício de que o cristal "já está chegando, com certeza".
ESPECIALISTA
Ação é quatro vezes pior que a da cocaína
Um dos maiores especialistas em mentanfetaminas no mundo é o psiquiatra Steven Lee, professor da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e autor de livro sobre a dependência em relação ao crystal meth. No artigo "Metanfetamina Cristal - Questões Atuais Sobre Dependência Química e Seu Tratamento", publicado na página da Embaixada Americana na Internet, o especialista afirma que "enquanto a cocaína aumenta a transmissão de dopamina no cérebro em 400%, a metanfetamina aumenta-a em 1.500%", ou seja, quase quatro vezes mais.
Lee explica que o cristal induz as células cerebrais a liberarem o estoque de dopamina e bloquearem a recaptação da dopamina para uso posterior. Por isso, a droga pode causar uma euforia inicial, seguida por forte sensação de bem-estar e elevada autoconfiança.
"O humor melhora e, se a pessoa estiver deprimida, o cristal pode trazer rápido alívio. Por outro lado, outros podem se sentir estimulados demais e ficar nervosos, ansiosos ou mesmo entrar em pânico".
Um dos principais problemas da "epidemia" de cristal nos Estados Unidos é a forte compulsão por sexo que o cristal provoca. Por conta disso, a droga está sendo vetor de transmissão do vírus do HIV - causador da Aids - e das hepatites B e C. "O sexo sob o efeito do cristal nem pode ser comparado ao ´sexo sóbrio´. A busca da gratificação sexual pode tornar-se uma compulsão tão avassaladora, irresistível, que a proteção contra o HIV parece um inconveniente enfadonho diante da necessidade muito mais premente de gratificação sexual", relata.
TESTEMUNHO
Usuária já teve parada cardíaca
"Não uso mais. O MD cristal causa uma depressão incurável. Depois que você dorme, quando acorda, sente uma depressão profunda, vontade de se matar. É como uma amnésia: você faz as coisas sem estar acordado. Você tem falta de apetite, mal-estar durante dois, três dias, fica muito mal, acamado mesmo. É incurável. Decidi parar porque ia morrer, com certeza. Fui ´bater´ no hospital duas vezes com parada cardíaca".
O depoimento resume a experiência de quase dois anos que a produtora de eventos Samara (nome fictício), 30, teve com o cristal. Ela diz que provou a metanfetamina pela primeira vez há dois anos, em uma festa rave realizada em uma boate em Fortaleza. Recebeu a droga de um amigo que trouxe a "novidade" de Brasília, onde o MD está presente "faz tempo". A produtora que já experimentou maconha, cocaína, crack, ecstasy e outras drogas garante que o MD não pode ser comparado a nada. "É bem mais forte do que todas elas, sem dúvida nenhuma. O princípio ativo é o mesmo do ecstasy, mas bem mais forte", relata.
Uma informação preocupante revelada por Samara é que o cristal está sendo muito utilizado por freqüentadores de raves. "Ora mais menino mesmo!", responde, ao ser indagada sobre isso. Segundo ela, a venda acontece nas próprias festas. "Tem muita gente usando", atesta. Apesar disso, ela acredita que o consumo ainda é reduzido porque o custo de uma cápsula ou de uma porção em pó é alto.
A ex-usuária diz que o efeito do cristal varia entre 12 e 36 horas e provoca euforia, alegria, vontade de dançar, aceleração dos batimentos cardíacos e aumento do desejo sexual. Atualmente, ela faz tratamento em um dos Caps-AD do município de Fortaleza.
DIFÍCIL FISCALIZAR
Polícias não conhecem a nova droga
As polícias Civil e Federal não têm informações de que o cristal esteja sendo comercializado no Ceará. O titular da Delegacia de Repressão aos Entorpecentes da Polícia Federal no Ceará, Glayston Araújo, declarou, por meio da Assessoria de Imprensa, que não tem conhecimento sobre a nova droga e descartou que já tenha havido apreensões.
O titular da Delegacia de Narcóticos (Denarc) da Polícia Civil, César Wagner Martins, também disse não ter recebido nenhuma denúncia sobre o cristal, acrescentando que o que já foi apreendido com um nome parecido foi o "crack cristal" ou "crack abacaxi", um tipo de crack mais refinado. O "abacaxi", porém, é uma variação do crack, e não uma metanfetamina, o que implica em efeitos diferentes: o do crack dura minutos, enquanto o do cristal chega a horas.
Sobre o comércio de drogas em raves, o titular da Denarc disse que há investigações preliminares sobre esse tipo de delito, mas, devido à alta demanda de combate ao narcotráfico e ao reduzido efetivo disponível, dá prioridade a ações mais urgentes, como desbaratar redes de tráfico. "A Denarc só tem oito inspetores e mais de 3.500 denúncias de pontos de venda de drogas", lamenta. O delegado explica que para agir nas raves, é preciso um trabalho de inteligência muito grande, pois não adianta prender os usuários. "Tenho que fazer investigação em quem está distribuindo".
FIQUE POR DENTRO
Atual "epidemia" nos EUA começou nos anos 80
De acordo com o psiquiatra Steven Lee, a atual "epidemia" de cristal nos Estados Unidos começou entre a classe operária do Havaí, que utilizava a droga para suportar dois ou mais empregos. Na zona rural, passou a ser encontrada em associação com fertilizantes químicos. A droga chegou aos clubes noturnos norte-americanos, espalhando-se primeiro entre a comunidade gay e depois entre heterossexuais. Autoridades norte-americanas assinalam que esse período começou nos anos 1980. Os primeiros registros de apreensões em São Paulo datam de 2005.
ÍCARO JOATHAN
Repórter
domingo, 27 de setembro de 2009
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